sexta-feira, 17 de abril de 2015

A vitória que mudou o mundo


A vitória que mudou o mundo

Artur Queiroz |
14 de Abril, 2015


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A Operação Displace, que teve início no dia 28 de Abril de 1988, marca o fim da invasão de Pretória e o início de negociações directas entre os governos de Angola, da África do Sul e de Cuba, sob mediação dos Estados Unidos.
O ponto final da Batalha do Cuito Cuanavale foi no Triângulo do Tumpo, ao longo do dia 23 de Março de 1988. A esmagadora derrota das tropas invasoras do regime de apartheid obrigou PW Botha a tomar medidas de emergência. Responsabilizou o seu ministro da Defesa, Magnus Mallan, e o comando das forças armadas em bloco. Acusou-os de o terem enganado. Numa reunião em Pretória mandatou o seu chefe dos serviços secretos (Neil Barnard) para tirar Nelson Mandela do cárcere.
No Sudeste de Angola as tropas invasoras retiravam penosamente, vergadas ao peso da derrota. Os soldados que chegaram à Namíbia escreveram nas paredes das casas onde pernoitaram: viemos do inferno.
O arco-íris começou de imediato a ser “pintado”. Era preciso garantir na África do Sul uma transição para a democracia, num clima de paz social. Neil Barnard, um radical do apartheid, revelou mais tarde que trocou confidências e deu todas as garantias a Mandela.
O futuro Presidente da África do Sul contou que já no fim das conversações com Neil Barnard, telefonou a PW Botha no dia do seu aniversário (12 de Janeiro) para lhe dar os parabéns. O chefe do apartheid, para retribuir a amabilidade, convidou-o para tomar chá e serviu-o. “Saí com a impressão de que tinha falado com um chefe de estado criativo, caloroso, que me tratou com todo o respeito e dignidade”, recordou depois Nelson Mandela.
No dia 29 de Março de 1988, os invasores punham-se a salvo rapidamente, temendo uma contra-ofensiva fulminante das FAPLA.
“Yet despite this, they came close to overrunning the badly over-extended 25-Brigade. Victory was within their grasp and they were about to clear FAPLA from the rear of their battalion positions”.  Contudo, apesar disso, eles quase conseguiam desalojar a 25ª Brigada mal posicionada no terreno. A vitória esteve ao seu alcance e estiveram a ponto de desalojar as FAPLA atacando por trás as posições do seu batalhão. (Coronel Jan Breytenbach  “The Buffalo Soldiers: The Story of South A­frica’s 32ºBattalion 1975-1993” página 268).
“However the brigadier – who had stationed himself 20km from to the rear and well clear of the battlefield – ordered an immediate withdrawal”. No entanto, o Brigadeiro – que tinha estacionado a 20 quilómetros da parte traseira e afastada do campo de batalha – ordenou uma retirada imediata. (Coronel Jan Breytenbach  “The Buffalo Soldiers: The Story of South Africa’s 32-Battalion 1975-1993” página 269). “They waited in vain. Brigadier Numa, instead of producing an encore, had decided that discretion was the better part of valour and had hurriedly withdrawn his brigade to position 20km farther back than the previous night”. Eles esperaram inutilmente. O Brigadeiro Numa, em vez de ressurgir, decidiu que a discrição era a melhor parte da operação e retirou, apressadamente, a sua brigada para uma posição 20 quilómetros mais distante em relação à posição da noite anterior. (Coronel Jan Breytenbach  “The Buffalo Soldiers: The Story of South Africa’s 32-Battalion 1975-1993” página 269).

Escrito nos anais


Abílio Numa e outros oficiais da UNITA, que no início dos combates derradeiros ­recuaram para 20 quilómetros do Tumpo, no dia 23 de Março já tinham recuado mais 20. Estavam a salvo e podiam chegar a Mavinga sem grandes sobressaltos.
Mas os militares da UNITA que não recuaram, pouco tempo se aguentaram nos combates. O coronel Jan Breytenbach, no seu livro “The Buffalo Soldiers  The Story of South Africa’s 32º Battalion 1975-1993” faz este relato impressionante: “Um cínico oficial americano, uma vez comentou que a missão de um soldado de infantaria é aproximar-se do inimigo e morrer com ele. Bem, muitos soldados da UNITA morreram, naquele dia 23 de Março, mesmo antes de entrarem em contacto com as FAPLA. Os canhões de 23mm eliminaram os ocupantes dos tanques como palha, enquanto os estilhaços da artilharia e os obuses dos morteiros faziam grandes estragos”. Esses militares das forças regulares de Savimbi não tiveram a sorte dos que iam recuando de 20 em 20 quilómetros, à medida que se desenrolavam os combates no Triângulo do Tumpo. A potência de fogo das FAPLA era tal, que só se via fumo e poeira, ainda que o céu estivesse limpo de nuvens.
O “pai” das forças da UNITA, Jan Breytenbach, foi uma testemunha privilegiada porque assistiu, desde o início, à derrocada das tropas invasoras. “Toda a potência defensiva das FAPLA foi dirigida contra o comando do Regimento do Presidente Steyn e contra uma UNITA já em fanicos”.
O comandante do célebre Batalhão Búfalo, do seu posto de observação, verifica que as forças de artilharia invasoras recuam para áreas mais seguras. Os comandantes perceberam que face à barragem de fogo das FAPLA e à intervenção dos MIG da Força Aérea Nacional, a derrota estava garantida. Só faltava saber a sua dimensão.  Jan Breytenvach dá uma indicação. Se os artilheiros se puseram ao fresco, “o mesmo não se pode dizer dos pobres soldados de infantaria da U­NITA, que entraram em acção encavalitados nos tanques Oliphant e nos Ratels. Os seus mortos ficaram espalhados em grande número pelo campo de batalha”. (The Buffalo Soldiers The Story of South Africa’s 32º Battalion 1975-1993. Página 309).

Explicação dos cemitérios


O comandante do Batalhão Búfalo revela o porquê da existência de um grande cemitério, junto ao terceiro tanque Oliphant recentemente encontrado no meio da mata, numa colina do Triângulo do Tumpo. A tropa de Savimbi “ficou em fanicos” e os mortos “estavam espalhados em grande número”. Foram enterrados à pressa, perto do tanque Oliphant que ficou fora de combate, ao início da tarde do dia 23 de Março.
Os oficiais das forças invasoras quiseram destruir os tanques, mas foram impedidos pelo alto comando. Naquele momento ainda acreditavam que iam ganhar a batalha. Acabaram por deixar o material de guerra e os seus mortos.
Face à estrondosa derrota, começou o jogo do “passa culpas” entre os oficiais do alto comando. O coronel Jan Breytenbach aponta muitos factores para o desastre militar. Mas mais uma vez implica a tropa de Savimbi. E escreve: “O oficial de inteligência da UNITA, Caxito, forneceu estimativas incorrectas da situação geral. Ele baseou-se na opinião exagerada que Jonas Savimbi tinha de si mesmo, segundo a qual era o mestre da guerra de guerrilha no continente Africano. Se qualquer um dos seus generais ousasse apontar os pontos fracos da estratégia de guerra de Savimbi, isso era considerado um insulto imperdoável. Essa audácia era geralmente recompensada com uma bala na nuca.”

Diário do desastre

De acordo com Helmoed Römer Heitman no livro “WAR IN ANGOLA: The Final South African Phase” (págs. 283-286), os sul-africanos já não sabiam o que haviam de fazer com a cabeça-de-ponte das FAPLA, a leste do rio Cuito. As tentativas para ludibriar as FAPLA com uma falsa retirada tinham falhado e elas responderam com ataques deliberados, realizados pelas suas forças firmemente desdobradas nas duas margens do rio Cuito: a oeste e a leste. Dada a natureza do terreno (totalmente alagado), um ataque a leste com uma força ainda maior era impraticável.
No dia 1 de Abril, às 10h00 horas, os MIG23 atacaram uma das posições de fogo da patrulha sul-africana de reconhecimento. A retirada era cada vez mais penosa. O moral das tropas invasoras estava de rastos.
Um soldado sul-africano foi ferido por estilhaços e um rebocador de artilharia ficou danificado. O regimento também perdeu um teodolito. À pressa, os artilheiros retiraram-se para as suas posições alternativas, logo depois de se confirmar que a precisão incomum deste ataque dos MIG não tinha sido um mero acaso.
Os elementos do 13º Regimento de Campanha passaram o dia 1 de Abril a efectuar operações de reconhecimento ao traçado pretendido para os campos de minas. O Regimento de Groot Karoo mudou a sua base para uma nova área. Estava muito vulnerável aos ataques da Força Aérea Nacional.
No dia 2 de Abril, os MIG estiveram continuamente no ar entre o nascer do Sol e as 18h35. O inimigo sentia-se cada vez mais acossado. Das forças regulares da UNITA não havia notícia. Como Numa tinha recuado de 20 em 20 quilómetros, provavelmente já estava perto de Mavinga.
No dia 3 de Abril, os MIG atacaram as posições dos canhões G-5 da patrulha de reconhecimento. No dia seguinte, registou-se mais actividade aérea e uma tentativa fracassada para atrair os MIG para uma armadilha antiaérea, em torno de uma posição de G-5 simulada. Os nossos pilotos já tinham muita experiência.
Durante a noite de 5 de Abril, o 13º Regimento de Campanha deslocou-se para uma posição, 15 quilómetros a Leste do Cuito Cuanavale para, em cooperação com tropas da UNITA sobreviventes, transportarem as minas que iam ser colocadas a Sul do rio Tumpo, para atrasar ou impedir a contra-ofensiva.

Vigiados de perto

As FAPLA não lançaram a contra-ofensiva porque sabiam que o terreno estava minado pelos seus engenheiros mas também pela engenharia dos invasores sul-africanos. No dia 7 de Abril, uma companhia de infantaria das FAPLA foi observada perto da estrada de Mavinga, precisamente a Sul do acampamento do 13º Regimento sul-africano.
Os militares angolanos vigiavam de perto os movimentos dos engenheiros sul-africanos. Depois da retumbante vitória no dia 23 de Março no Triângulo do Tumpo, era preciso evitar surpresas.
De 8 a 10 de Abril, a artilharia sul-africana entrou num duelo com a artilharia angolana valendo-se do maior alcance dos seus canhões, agora instalados nos limites do rio Chambinga.
No dia 14 de Abril, foram retiradas da frente as principais unidades sul-africanas. Mas o alto comando sul-africano decidiu que fosse realizada uma acção contra as forças das FAPLA no Triângulo do Tumpo, para criar a impressão de que os invasores ainda se encontravam lá e com toda a força. A simulação também implicava manter activas as estações das unidades já ausentes nas redes de comando e logística.

O adeus às armas

No dia 15 de Abril, o 1º Batalhão do Regimento De La Rey e o Esquadrão B do Regimento Presidente Steyn despediram-se do campo de desmobilização do outro lado do Kavango para o Rundo. No mesmo dia, o comandante Paul Fouché tomou conhecimento que o seu sogro tinha morrido. Concederam-lhe uma semana para ir a casa e o coronel Hennie Blou, da 7ª Divisão, assumiu o comando da 82ª Brigada Sul-Africana, em retirada.
Enquanto a operação de simulação estava a ser preparada, o brigadeiro Fido Smit e o coronel Robbie Roberts, comandante do Centro de Mobilização da 7ª Divisão, visitaram o 45º Posto de Observação A e uma das posições de artilharia.
No dia 20 de Abril, visitaram as antigas posições da 16ª Brigada. À medida que se distanciavam de um dos tanques que haviam inspeccionado, o seu Ratel detonou uma mina, que destruiu uma das rodas do meio.
Às 07h:00 do dia 21 de Abril, Hennie Blou começou a sua acção de diversão contra as posições das FAPLA que se encontravam no Cuito Cuanavale e no planalto entre o Cuito e o Cuanavale (36ª Brigada). As companhias A e B do Regimento Groot Karoo e o Esquadrão A do Regimento Presidente Steyn dispararam contra as FAPLA a partir das posições, a Norte da confluência, no espaço confinado pelos rios Cuatir e Cuanavale. Os resultados foram nulos.

As últimas baixas

No dia 23 de Abril, a operação de colocação de minas ao longo da anhara Lipanda resultou nas últimas baixas para os sul-africanos. Um dos sapadores morreu quando detonou uma armadilha das FAPLA. Outros três sapadores e sete soldados da UNITA ficaram feridos.
O sapador Johannes Badenhorst entrou no campo minado, numa zona que não ajudou a implantar, e não sabia o que fazer para recuperar o soldado gravemente ferido. Mesmo assim, voltou e desactivou várias minas para permitir que o corpo do homem, já morto, fosse recuperado.
No dia seguinte, Badenhorst mostrou novamente a sua coragem, quando o motor do Ratel do sapador pegou fogo. Incapazes de extinguir as chamas, os sapadores abandonaram o veículo. Badenhorst foi ao local e atirou os equipamentos e as munições para fora do veículo até as primeiras explosões o obrigarem a sair. No dia 28 de Abril, chegaram as primeiras tropas da “Operação Displace” e do esquadrão antitanque do major Hannes Nortmann do 32º Batalhão. O objectivo da “Operação Displace” era “manter a linha” ao longo do Rio Cuito para dar tempo a eventuais negociações e enquanto o traçado do obstáculo estava a ser preparado.
Às 19h:00 do dia 30 de Abril de 1988, as restantes unidades da 82ª Brigada Sul-africana estavam prontas para a retirada. Foram para a Área Administrativa da Brigada, às 20h00. A “Operação Packer” estava terminada. A derrota humilhante sofrida no Triângulo do Tumpo em breve ia acabar com o regime de apartheid.
O Coronel Jan Breytenbach, no seu livro “The Buffalo Soldiers The Story of South Africa’s 32º Battalion 1975-1993” escreve o epitáfio: “o dia 30 de Abril de 1998, marcou o início da ‘Operação Displace’, quando o comando mudou do coronel Fouché para o comandante Piet Nel, um célebre pára-quedista, conhecido nos círculos castrenses como ‘Piet Graspol’ (Piet Tufo de Capim). Assumiu o comando de uma força que foi designada, erradamente, por 20º Grupo de Combate. A unidade devia ser designada por Grupo de Batalha 20. O grupo incluía o esquadrão antitanque do major Hannes Nortmann, uma companhia motorizada de fuzileiros do 32º Batalhão, duas secções de engenheiros e uma bateria G-5 de 155mm. A UNITA forneceu três batalhões para ocupar o sistema defensivo projectado para manter as FAPLA à distância”.
Em Pretória, PW Botha nem queria acreditar que as suas forças estavam derrotadas, quando os chefes militares lhe relatavam grandes êxitos no terreno e os jornalistas apresentavam Savimbi como um chefe militar imbatível.
O derrotado presidente do regime de apartheid terminou seu mandato a 15 de Agosto de 1989, pouco mais de um ano depois da vitória das FAPLA no Triângulo do Tumpo e como resultado do Acordo de Nova Iorque. Entregou o poder a Frederik de Klerk, o presidente da transição.
 
Versão de Chester Crocker

Chester Crocker, o chefe da diplomacia de Washington na época, no seu livro “High Noon in Southern Africa: Making Peace in a Rough Neighbourhood”, faz muita ficção mas revela elementos que permitem uma leitura mais abrangente do que se passou no Triângulo do Tumpo.
Sobre a situação militar no Cuito Cuanavale escreve: “As operações das forças sul-africanas/UNITA, de Janeiro a Março de 1988, foram projectadas para remover as FAPLA do seu refúgio na margem Leste do rio. Quando a defensiva das FAPLA se tornou mais consistente, em Fevereiro e Março, Pretória decidiu que uma vitória política no Cuito não valia a pena, e especialmente o custo humano em efectivos de raça branca que esta acção podia exigir”. Esta é a versão que lhe “venderam”. A realidade foi diferente.
Chester Crocker também diz que a “missão do embaixador Neil van Heerden a Washington, em Março de 1988, acabou por marcar o ponto de viragem na política externa sul-africana”. Mas depois reconhece que “nós soubemos da decisão sul-africana de reunir com os cubanos e os angolanos em meados de Abril. Não havia necessidade de uma etapa intermédia de negociações de proximidade: este era um encontro directo”.
A mudança na política externa de Pretória foi tão grande que deixou Washington de fora e PW Botha, face à derrota militar, decidiu negociar directamente com Angola e Cuba. Só mais tarde a diplomacia norte-americana voltou a ganhar protagonismo. Quem nunca esteve, nem de perto nem de longe, nas negociações, foi a UNITA.
Pretória escondeu Savimbi na Jamba ou no Gabão e rapidamente esqueceu os seus aliados. Washington, no dia da Independência da Namíbia, meteu “uma cunha” ao Presidente José Eduardo dos Santos, para dar uma mão aos derrotados. Assim se chegou a Bicesse, uma oportunidade de ouro que Savimbi desperdiçou.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

"Paz única no Mundo"

O general Gerarldo Abreu “Kamorteiro”, um dos signatários do Memorando de Paz de 4 de Abril de 2002, revela pormenores sobre a acção do Presidente José Eduardo dos Santos, para que o acordo se concretizasse  e fosse o êxito hoje reconhecido internacionalmente.

Actual vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Angolanas, diz com orgulho que a paz lhe permitiu realizar o  sonho de menino, ao voltar à escola em 2003 para concluir a licenciatura em História, na Universidade António Agostinho Neto.

Jornal de Angola - Há alguma coisa que considere não ter sido explorada ou  valorizada no processo de paz?

General Kamorteiro
 - Talvez a autenticidade do processo. Nós  fazemos parte de uma geração que viu surgir o 25 de Abril. A paz que tivemos de 1974 e 1975 foi efémera, porque não tardou e descambou em guerra. Tivemos depois mais 16 anos de guerra até Bicesse, que também descarrilou. Então viemos para o Memorando de Entendimento do Luena, cuja paz perdura até à data. Não há comparação possível. Só gente desmiolada pode duvidar.

JA - A quem se refere quando fala de gente  desmiolada?

GK
-Refiro-me às pessoas que apresentam argumentos sem qualquer sustentação  e acabam por confundir outras pessoas com as coisas que dizem. O facto de termos a paz não significa que tudo esteja feito. Foram dados passos gigantescos desde que estamos em paz e isso é absolutamente inegável.  É impossível ficar indiferente ao facto de Angola estar pela segunda vez como membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.Todos dias chegam a Angola delegações estrangeiras a querer investir. Angola é hoje uma referência mundial.  Vejam a centralidade do Kilamba ou mesmo aquela que está no Dundo. Não havia no tempo colonial. 

JA-Depois de assinar o memorando disse que os angolanos começavam uma nova era. O que o deixou tão confiante?

GK-
Na sequência da morte do presidente da UNITA, Jonas  Savimbi, dias depois morre também o vice-presidente. O terceiro homem na hierarquia era o general Paulo Lukamba Gato. E esse estava numa determinada área com outros membros da direcção. Tiveram a iniciativa de criar uma comissão de gestão que, através de canais apropriados, conseguiu entrar em contacto com o Governo. Foi uma análise muito rápida que levou a Comissão de Gestão do partido a concluir que havia predisposição do Governo para uma negociação séria. Nessa altura, uma delegação chefiada pelo actual chefe do Estado-Maior, general Nunda, foi ao local aonde se encontrava o general Lukamba Gato, para transmitir aquilo que espelhava o pensamento do Presidente da República e Comandante em Chefe. Até porque na altura, a 13 de Março, o Governo já tinha declarado cessar-fogo a partir do dia 14.

JA- Quando foi contactado?

GK-
 Eu vim para este processo no dia 12 de Março. No dia seguinte o general Nunda foi encontrar-se comigo e transmitiu-me aquilo que eram as ideias do Presidente da República. Achei muito interessante. 

JA- Que mensagem foi essa?

GK-
Disse-me que o Presidente da República desejava conversações sérias e profundas, numa primeira fase, somente entre angolanos. Fazia questão que não houvesse nenhuma interferência externa. Por isso é que às vezes digo que talvez antes nos tivesse faltado maturação e se calhar também tivesse havido excessiva interferência externa. Hoje digo sem medo de errar que a paz que vivemos é uma obra nossa. 

JA- Reforçou a confiança?

GK-
Recordo-me de um comentário do general Armando da Cruz Neto, estávamos no Lobito,  onde também estavam o actual chefe do Estado-Maior general, o general Nunda, e o general Carlos Hendrick. Ao comentar o nosso processo de paz, ele sublinhou que foi bom ter-se feito finca pé naquela altura e seguirmos em frente com o processo sem interferências e com muita firmeza de ambos os lados. 

JA-A UNITA tinha condições para prosseguir  a guerra?

GK-
Podia não ser uma guerra tão sustentável, mas uma confusão seria real. Imaginem aquela gente toda, sem uma orientação. Alguém que lhes dissesse vão para ali ou para lá. Era normal que pensassem em não arriscar e ir até às últimas consequências. Um homem completamente cercado resiste até às últimas consequências. 

JA- O que dizer aos jovens sobre o valor da paz?

GK-
  Alguém me condene por esta expressão, mas vivemos  num mundo que está de cabeça para baixo. É um mundo muito violento em que se fala do terrorismo, que se apropriou de certas religiões que historicamente até são pacíficas, para promover a violência. Daí a necessidade de termos muito cuidado. Mesmo os da minha geração que têm de passar o testemunho, devemos dar uma educação muito profunda à nossa juventude para não se perder.

JA- As Forças Armadas são o espelho da reconciliação?

GK-
Em relação a essa questão, penso que, mais do que as próprias Forças Armadas,  o próprio acordo de paz que se celebrou a 4 de Abril constitui hoje, não só para Angola, mas para África, um paradigma. Uma fonte de conhecimento. Porque são poucos casos de conflitos que terminaram como terminou o nosso. E recordo-me que no dia em que assinamos o memorando, o Presidente da República estendeu um abraço aos signatários deste processo, e minutos depois convidou o então chefe da comissão de gestão da UNITA, Paulo Lukamba Gato, eu e o brigadeiro Marcial Dachala, só mesmo para nos encorajar. Ainda depois disso, não faltaram bocas de alguns cépticos, questionando se aquilo estava mesmo a acontecer. Talvez com alguma razão pelo que se passou com Bicesse, que foi uma grande desilusão para os angolanos. Mas nós nas Forças Armadas fizemos finca pé e dizíamos, já naquela altura, que aqueles que não acreditassem ficariam sozinhos, porque nós iriamos para frente. E isso ajudou bastante o país, porque é uma grande referência naquilo que constitui a unidade ou mesmo coesão nacional. As FAA são uma grande referência, pelo que fizeram e o que têm feito para que esse processo se tornasse no êxito que é hoje.

JA- Recorda das palavras do Presidente da República no encontro após a assinatura do acordo?

GK-
Recordo-me bem de uma passagem em que inclusive utilizou a expressão irmãos. E disse: Camaradas, chamei-os aqui como irmãos. O país está dilacerado mas com a vontade de todos vai para frente. O processo é irreversível se houver vontade patriótica. É uma das que me lembro e foi muito forte. Ouvir isso do próprio Presidente deixa marcas.

JA- É frequentemente convidado a falar no estrangeiro sobre o processo de paz angolano e a trajectória das forças armadas. Qual tem sido a reacção das pessoas que o ouvem?

GK-
 Como disse, o processo de paz angolano deve ser um caso de estudo para África e para o Mundo. Assim como as nossas Forças Armadas. Em Outubro estive em Adis Abeba para falar sobre a trajectória das Forças Armadas e muita gente ficou de boca aberta.Porque nem todos conheciam os pormenores do processo de criação das Forças Armadas Angolanas desde 1991. Foi um processo de avanços e recuos, progressos e retrocessos, mas que no fim deu certo. São processos políticos que não têm caminhos delineados, mas a coisa deu certo.

JA-O que a experiência de Angola pode valer ao Mundo?

GK-
 Angola praticamente tornou-se no mais requisitado conselheiro dos Estados na África Austral, Central, nos Grandes Lagos, Golfo da Guiné, etc. E também no Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde tenho acompanhado com muita atenção as nossas intervenções, Angola tem dado boas cartadas. Temos passado a nossa experiência e ninguém põe isso em causa.

JA- A experiência de Angola em resolução de conflitos, do Brasil em políticas de redução da pobreza, e de outros países em vários domínios, serviam melhor ao mundo com uma eventual reforma do Conselho de Segurança?

GK-
 Não tenho a menor dúvida que sim. Países tão importantes e de referência como Angola, África do Sul e Nigéria, dariam bons representantes de África nas Nações Unidas. O actual formato do Conselho de Segurança já vigora há muitos anos. Os tempos são outros, inclusive os próprios conceitos mudaram. Porque não reformular esse órgão? Estamos a caminhar para um mundo multipolar que obriga a que o Conselho de Segurança tenha um formato diferente da que representa hoje.

JA-Teve algum significado especial para si fazer a licenciatura?

GK- 
Formar-me em história vem desde o tempo do meu avô. E tão logo chegamos, comecei a comprar livros. Pensei que chegara a hora de fazer aquilo que não pude fazer durante os quase 30 anos de guerra. Tudo porque sempre acreditei. Desde a assinatura do processo de paz, disse-o publicamente que a paz em Angola era irreversível e quem não acreditasse ficaria pelo caminho. Do meu salário, todos os meses comprava dois ou três livros. Em 2003 comecei o curso de licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade António Agostinho Neto, e pouco tempo depois fiz o mestrado. 

JA- Qual foi o tema do seu mestrado?

GK- 
Falei do impacto económico e social da ocupação colonial em Angola, o caso do Bié.

JA-Porque não a história do processo de paz?

GK
-Houve quem sugerisse isso. Mas em história aprendemos que existem três tempos para se escrever. O tempo longo, que é de 50 a 10 anos, que é talvez o ideal para se escrever a História, o tempo intermédio, de uns 20 a 30 anos. E há o tempo imediato. E no meu caso, embora tenha vivido essa história, contá-la é muito mais difícil. O historiador francês Fernand Braudel chama a esses casos ‘histórias precipitadas’ ou ‘histórias que ainda sangram’, pois os seus protagonistas estão vivos e o que for contado pode ferir susceptibilidades.

JA-Conte-nos a história da sua alcunha?

GK-
 Essa história remonta o tempo em que pertencia ao Batalhão Fandango, comandado pelo general Kufuna-Yembe. Primeiro pertenci à sua unidade e depois agregou-me à sua segurança, como atirador de morteiro. Num episódio qualquer em Dezembro de 1975 achou que devia chamar-me Kamorteiro, que quer dizer ‘morteiro pequeno’. Decidiu baptizar-me assim porque tinha muita mestria. O nome ficou até 1979, altura em que fui para os meus treinos no exterior. Mas em 1998 ele foi informar a direcção do partido que o meu nome era Kamorteiro. E assim ficou até hoje.

Fonte: Jornal de Angola

PROJECTO LIBOLO

Estive em Calulo, Libolo, a terra que me viu nascer, como congressista convidado ao Congresso Internacional Linguístico (20° Conferência Anu...