sábado, 12 de junho de 2010

Entrevista "atrevida" de Alves da Rocha...« Preto no Branco»

Alves da Rocha é economista, professor e um intelectual angolano. É um homem, sobretudo, corajoso. Nesta entrevista à reportagem da Folha, o professor dá um panorama da atual situação de Angola, uma nação com independência há pouco mais de 35 anos, mas que conseguiu a paz apenas há pouco mais de oito anos. Tempo suficiente para se tornar o país que mais cresce no mundo.
Um desempenho tão extraordinário do ponto de vista da expansão econômico, quanto da precária situação social do país que pode ser vista ao percorrer o país.A reportagem da Folha passou nove dias em Angola e pode observar como essa ex-colônia de Portugal experimenta --entre erros e acertos-- um novo momento de sua história. Da análise da atual situação econômica aos hábitos da corrupção enfronhada no Estado, Rocha desfia um diagnóstico definitivo sobre o milagre de Angola. A seguir a entrevista concedida numa sala do Ministério do Planejamento do governo angolano.

A economia de Angola deve recuperar o dinamismo em 2010?
As duas peças básicas que são o orçamento geral do estado e plano nacional estão a ser objeto de revisão, nós estamos trabalhando nisso. Já temos a análise toda do ano de 2009 e já temos alguns informações do primeiro trimestre de 2010. Vamos ver agora em termos de expectativa o que é que pode vir a acontecer em 2010. Há indicações de uma retomada econômica forte. A primeira projeção feitas, e que consta do plano nacional a ser revisto, situava a taxa de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) em torno de 8,8%. O que comparando com os 2,74% de 2009 já denota alguma retomada.

Mas qual o problema para se saber o que de fato ocorreu em Angola?
O problema é que na falta de um sistema estatístico confiável ninguém sabe o que aconteceu em 2009 e em 2008, nem 2007. Só para dar conta, a Universidade Católica Angolana estima que o crescimento econômico em 2009 tem sido inferior a 2%, 1,9%. O governo indica 2,74%. O Fundo Monetário Internacional apresenta uma cifra negativa de 0,4%. A revista The Economist apresenta uma taxa estimada para o crescimento do PIB de menos 2%. O Banco Africano de Desenvolvimento estima em 0,1%. Portanto, não se sabe. E não se sabe porque Angola não tem um sistema de contas nacionais. De qualquer maneira, é necessário que as projeções sejam feitas.

O país sofreu um forte abalo na crise econômica mundial. Qual foi o impacto?
Aparentemente a queda das reservas internacionais foi muito dramática, entre Outubro e Dezembro de 2008 perdeu-se algo como US$ 3 bilhões. A reserva passou de US$ 20 bilhões para US$ 17 bilhões no período. Não foi apenas justificada pela crise petrolífera, houve aqui especulações sobre o que teria acontecido às reservas. Até que depois do governo deu início a uma sindicância e uma investigação para saber o que havia passado e apanhou falcatruas em cerca de US$ 200 milhões, um valor ínfimo em relação àquele efetivamente perdido. Mas objetivo de defender as reservas internacionais, o governo tornou as coisas muito difíceis aos acessos às divisas. O ano de 2009 foi dramático, o que seguramente a taxa de 2,7% de crescimento se deveu às medidas restritivas. Face a diminuição das receitas fiscais provenientes do petróleo, o governo também reduziu suas despesas, nomeadamente os investimentos públicos e houve uma quebra de 40% do investimento público.

Qual é a taxa de investimento sobre o PIB em Angola?
A taxa geral de investimento deve estar da ordem de 30%, mas com um peso muito grande do sector do petróleo que responde por 50% a 60% da taxa global de investimento. O resto é investimento público e privado somados. Diria que o investimento público deverá rondar os 10% do PIB, nos últimos anos, depois da paz, depois da resolução do conflito militar, porque antes disso a taxa de investimento pública era muito pequena. Não havia condições de investir. O governo construía as estradas e aí vinha a Unita e dinamitava as rodovias. Depois de 2002, realmente assistiu-se a um incremento significativo do investimento público.

O investimento público tende a se manter em 10% do PIB como foi até agora no período do pós-guerra?
Provavelmente. Neste momento o governo angolano tem uma dívida face as construtoras estrangeiras, inclusive algumas pequenas construtoras angolanas. O Estado deve mais de US$ 4 bilhões, e foi por causa dessa dívidas que muitas obras pararam. Houve dispensa de trabalhadores. Portanto, o que o governo deve fazer ainda neste primeiro semestre é pagar aquilo que deve. Isso é investimento público de 2009, não é investimento público de 2010. Não sei dizer qual o investimento público programado para 2010. Na versão inicial do plano e do orçamento do estado, que estão em revisão agora, o investimento público deveria estar a volta dos US$ 9 bilhões em obras de reconstrução em 2010. Com a revisão não sei. Face o aumento do barril do petróleo e das receitas fiscais esses investimentos públicos talvez venham aumentar.

É um índice muito mais alto do que no Brasil, por exemplo. 
Mas veja o grande problema do investimento público aqui não é o seu montante, mas sim a nossa capacidade de execução. Porque o orçamento pode prever bilhões, mas não temos capacidade de absorção disso, e é o que tem acontecido. Para lhe dar um número sobre 2009, e a despeito de ter havido uma redução do orçamento do ano passado para o investimento público, a taxa de execução rondou os 35%. Portanto ficaram 65% do valor de investimento público inscrito no orçamento por executar. Portanto isso dá a medida da nossa capacidade de fazer as coisas. O país está a andar a uma velocidade puxada pelo sector petrolífero que nós não temos capacidade de controlar e perceber o que está passando. E isso tem a ver com a fragilidade da administração pública, com a capacidade de adjudicar ou fiscalizar essas obras, com uma série de coisas. Isso pode ser um limite, um entrave importante no futuro para Angola entrar numa rota de desenvolvimento económico sistemático. Faltam gente e capacidade do estado para tocar tudo isso. Mesmo com crescimento económico elevado, Angola enfrenta ainda um grave problema de desemprego.

Qual a taxa de desemprego hoje no país?
 As contas do governo, as quais ninguém acredita, dizem que a taxa de desemprego em 2009 foi inferior a 22,5%. As estimativas da Universidade Católica Angolana, que vão constar do relatório económico, apontam uma taxa de desemprego ao redor de 25%, mas acreditamos que estejam subavaliados. Nós também não temos instrumentos para aferir isso com mais detalhes. Mas para dar uma ideia, todos os países limítrofes de Angola, tem taxas de desemprego relativamente elevadas, como Botsuana, Namíbia, as taxas rondam os 10% a 12%. Mas nosso padrão de referência é a África do Sul, e a taxa de desemprego lá, numa das publicações da The Economist, dava conta de uma taxa de desemprego de 25%. Mas mesmo lá, os sindicatos contestam a taxa de desemprego. Dizem que é muito superior, dizem que está por mais de 30%. Portanto, ninguém sabe. A sensação que se tem é que a taxa de desemprego é muito elevada. O governo no relatório que acabou de ser aprovado em conselho de ministro de execução do plano de 2009, afirma que no ano passado a economia de Angola criou 385 mil novos postos de trabalho, o que ninguém acredita. O governo apresenta os dados, sector a sector, mas todos duvidam. Quando essas informações são apresentadas ao público, os empresários dizem que isso não é possível. Porque nomeadamente no domínio da construção, junto com a agricultura, que são sectores que mais empregam, houve dispensas. Mesmo assim, o governo apresenta números que dão conta de um aumento da criação líquida de postos de trabalho na construção, o que ninguém acredita.

Mas esse novo ciclo económico conseguiu algum nível de ascensão social dos mais pobres?
Essa é uma matéria sobre a qual há muita discussão, há muito debate. Porque a taxa de desemprego está ligada a taxa de pobreza. Em Angola, a taxa de pobreza é extremamente elevada. Ninguém sabe exactamente qual é. O último dado que temos é de 2002, que dava conta de uma taxa de pobreza ao redor 70%, já incluída a população que vive abaixo do nível de pobreza ou a população que vive com menos de 2 dólares por dia. A pobreza extrema que abrange a população que vive com menos de US$ 1,25 por dia, andava a volta dos 30%. Os indicadores precisam ter uma consistência entre si. Não se pode dizer que a taxa de desemprego está a cair quando não há melhorias visíveis na taxa de pobreza. No entanto, o crescimento económico de Angola a partir, principalmente de 2004, deve ter provocado um efeito de contágio, de disseminação. Ou seja, deve-se ter sido possível aproveitar alguma janela de oportunidade que esse intenso crescimento económico criou. Então, pessoalmente acredito que determinadas faixas da população, que estavam ligeiramente acima desse limiar da pobreza, conseguiram aproveitar essas oportunidades e conseguiram melhorar alguma condição de vida.

Mas dado pode demonstrar essa pequena evolução?
A quantidade de carros que existem em Luanda (capital de Angola). Só Luanda importa 2 mil carros por semana, 90% dos quais usados. É só andar pela cidade para ver que há muito carro, velho, a bater com o motor. Importados por US$ 3 mil ou US$ 4 mil, da Bélgica, da Holanda. São carros de quinta mão. Mas não há dúvidas de que aumentou a faixa da população que conseguiu ter esse dinheiro para comprar um carro usado. Isso significa que o crescimento econômico permitiu um aproveitamento, apesar de o modelo de distribuição de rendimento ser muito desequilibrado ainda. Basta ver os candongueiros (motoristas de pequenas vans que respondem por grande parte do transporte público na capital) e os apartamentos de US$ 2 milhões que são vendidos na zona nobre da cidade. Há uma desigualdade muito grande.

Esse fosso social está crescendo?
O estado nunca disse: "Bem agora vamos tirar dos ricos e dar aos pobres". Pelo contrário. O estado controlado pelo MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) _ o partido do poder _ privilegia, apoia a constituição do que o partido chama de uma burguesia nacional pelos mais variados processos.

Como funcionam esses modelos de criação dessa casta? Parece que houve inclusive um modelo institucionalizado para criar capitalistas angolanos.
Sim, há um assalto ao orçamento. É evidente. Os instrumentos podem ser a adjudicação das obras, por exemplo. As construtoras poderiam dizer muito melhor do que eu quais são as comissões que são obrigadas a dar para que o governo adjudique a empresa a uma determinada obra. As comissões são muito elevadas. Essa é uma via que transfere para essa classe de políticos, militares, governantes essas obras. Grande parte dos empresários que Angola tem são oriundos da esfera política. Não há um único ministro que não tenha empreendimentos, não há nenhum ministro neste país que não tenha uma fábrica, ou participe de uma, ou uma fazenda agrícola, meios de transporte, não há absolutamente nenhum. Essa gente é rica, e rica mesmo. São fortunas. Não sei como a revista Fortune não incluiu ainda nenhum angolano, porque há aqui fortunas de US$ 400 milhões, US$ 500 milhões, entre dinheiro, patrimônio, essas coisas todas. Isso foi sempre através do estado.
 
Isso ocorre com o setor petrolífero também?
Veja, há muitos políticos, governantes, dirigentes ligados ao partido que alugam suas casas, vão viver em condomínios que são do estado, e recebem uma renda de US$ 25 mil ou US$ 30 mil mensais do sector petrolífero. As petrolíferas pagam essa renda, mas sabe-se qual é o mecanismo. No cost oil, as petrolíferas vão dizer quanto gastaram. E portanto quem esta pagando essa renda? Somos nós, é o governo, é o Estado, é o orçamento.

A nova constituição busca resolver esse problema da corrupção no Estado angolano?
As declarações do presidente vão no sentido de corrigir a forma de distribuição da renda no país. Sente-se que é um modelo baseado na corrupção, na incompetência, no tráfico de influências e é evidente que isso não é bom para a sociedade. Não é bom para as pessoas e para a própria imagem internacional do país. A nova constituição ou as declarações do presidente da república vão no sentido de corrigir esse modelo de participação nos rendimentos. Quando o chefe de estado fala que a partir de agora é tolerância zero, quando ele fala nas intervenções públicas que os ministros e os políticos não podem ter negócios, ou dedicam-se aos negócios, ou dedicam-se ao governo e a política, significa que há consciência de que as coisas estão mal. Agora, se há vontade política para alterar as coisas isso é outra coisa. Entre tomar consciência do problema e haver vontade política de alterar vai muita distância.

Qual é dificuldade?
Alterar a situação actual significará mexer com interesses, interesses estabelecidos e consolidados. Essa gente vê como uma piada a lei da probidade pública, da tolerância zero. Todos estão de acordo, mas quando começar a tocar nesses interesses as coisas ficam muito complicadas. Porque se alguém alguma vez for denunciado e for levado a julgamento, por não conseguir justificar como adquiriu a fortuna, esse indivíduo, se quiser falar, levará toda a gente a julgamento e à prisão. Porque o MPLA criou uma teia, laços entre os dirigentes em que ninguém fala do outro. Porque se alguém um dia falar, vão-se todos. Porque as relações são umbilicais.

Há instrumentos legais que proíbem essa relação?
A nova constituição é clara quanto a isso. Se há um dirigente, um ministro que entenda que há uma oportunidade de negócio e ele quer aproveitar a oportunidade de negócio, de acordo com a lei, ele opta, sai do governo e vai fazer o negócio. Mas o fato de ser membro do partido e do governo confere a essa pessoa condições vantajosas em termos de conhecer as oportunidades. Aqui não há uma democratização das oportunidades. Quando um cidadão normal se der conta de uma oportunidade, um membro do governo já sabia dela e já a aproveitou.

O sr. confia na disposição do governo em mudar esse estado de coisas?
Não. Não porque não é a primeira vez. Já há dez anos, tentou-se criar a alta autoridade contra a corrupção. Criou-se no papel, nunca foi criado o tal comissário anticorrupção. Os casos que são dados a conhecer ao público, são menores. Uma queda das reservas internacionais de US$ 3 bi (considerado um ataque especulativo ao Kwanza, moeda local) levou o governo a investigar pessoas do ministério das Finanças e do BNA (Banco Nacional de Angola, o banco central) que urdiram contratos falsos com empresas estrangeiras. Mas cadê os outros. Não há qualquer possibilidade de arranjar uma fortuna num país que é independente há 35 anos com 20 anos de regime socialistas. Quando terminei de estudar em Portugal, era marxista. Depois de ter vivido o regime socialista aqui...

Quem me venha falar disso eu dou as costas. Porque o que se passou aqui no regime socialista, eu vou lhe dizer... Em termos de dificuldade de alimentação, de se vestir, de tudo. Tirando os 20 anos de regime socialistas, como é que em 15 anos as pessoas com o seu trabalho, ainda que seja com empreendimentos, conseguem juntar fortunas de US$ 600 milhões ou US$ 700 milhões?
Agnaldo Brito in:  Folha.com.br

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