sábado, 18 de outubro de 2025

 Os Acordos de Alvor, um nado morto da transição angolana


Muitos enaltecem os Acordos de Alvor por simples ignorância histórica ou por conveniência política. Com efeito, os Acordos de Alvor, assinados a 15 de Janeiro de 1975, entre o Governo português e os três principais movimentos de libertação de Angola, a saber: o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), representaram mais um exercício formal de diplomacia do que um verdadeiro compromisso com a unidade nacional.
Ao contrário do que por vezes se afirma, o Acordo de Alvor não consolidou a independência de Angola. Ficou reduzido a um registo histórico de intenções, sem concretização política nem social. A sua fragilidade estava inscrita desde a origem. À mesa de negociações sentaram-se quatro actores: o poder colonial português e os três movimentos de libertação que, meses depois, se envolveriam em confrontos abertos e sangrentos.
A animosidade entre as forças nacionalistas era antiga e insuperável. Desde 1962, o MPLA e a FNLA disputavam influência territorial e reconhecimento político, com a FNLA a controlar o Norte e a interditar a presença do MPLA na zona fronteiriça com o antigo Zaire (actual República Democrática do Congo) e de forma sanguenta. No Leste, a UNITA, então uma força ainda incipiente, mantinha contactos com a PIDE/DGS e beneficiava, em certos momentos, de apoio tácito do sistema colonial, funcionando como instrumento de equilíbrio no tabuleiro político.
Portugal, por sua vez, longe de ser um árbitro neutro, tinha infiltrados nos três movimentos e usava a mesa de Alvor para gerir uma retirada estratégica. A assinatura dos acordos serviu mais para salvaguardar os interesses imediatos de Lisboa e projectar uma imagem de “descolonização exemplar” do que para construir uma base real de coabitação política.
Nenhum dos signatários acreditava verdadeiramente na viabilidade do acordo. Todos possuíam um “plano B” e só assim se explica o recurso a forças estrangeiras nas batalhas antes da independência, uma estratégia alternativa para o controlo do poder no antes e pós-independência. Assim, o fracasso era inevitável. A ruptura deu-se poucos meses depois, quando os três movimentos proclamaram, de forma autónoma e em territórios distintos, as suas próprias independências. Portugal, sem autoridade para gerir a transição e sem presença militar suficiente para garantir a ordem, abandonou precipitadamente o processo, deixando Angola à mercê de uma guerra civil devastadora que só terminou em 2002.
Os Acordos de Alvor enquadram-se, assim, numa longa tradição de tentativas falhadas de pacificação e reconciliação em Angola. Tal como os Acordos de Gbadolite (1989), de Bicesse (1991) ou de Lusaka (1994), Alvor partilhava o mesmo vício de origem: a ausência de confiança entre as partes e a instrumentalização política dos processos de paz.
Por isso, é um erro histórico considerar o Acordo de Alvor como um marco decisivo na consolidação do Estado angolano. Ele foi, na verdade, um nado (nascido) morto, um acto simbólico que antecipou o colapso da convivência política e a eclosão da guerra civil. O verdadeiro ponto de viragem da história contemporânea de Angola só viria quase três décadas depois, com os Acordos de Luena (2002), que finalmente encerraram o conflito armado e inauguraram um período de paz efectiva, ainda que com desafios profundos de reconciliação e coesão nacional. E para lembrar que os acordos do Luena só vincaram porque a paz foi imposta pela força.

 ACORDOS PRÉ-ALVOR

‎Essa é uma parte da história pouco explorada mas fundamental da pré-história dos Acordos de Alvor e relata os encontros nas matas de Angola, realizados ainda sob fogo e clandestinidade, entre 1974 e início de 1975.
‎Esses encontros não constam, na sua maioria, dos registos oficiais portugueses ou das actas de Alvor, mas são muito citados em relatos orais, memórias de guerrilheiros e arquivos militares angolanos. Eram reuniões separadas, de carácter político e militar, conduzidas por comandantes regionais dos movimentos de libertação e nem sempre com a presença dos líderes máximos, para testar alianças, avaliar forças e sondar posições sobre o futuro pós-colonial.
‎Aqui vai um resumo histórico rigoroso do que se sabe sobre esses encontros nas matas, divididos por região e contexto político.
1. As matas do Moxico e Cuando Cubango – contactos entre UNITA e oficiais portugueses
‎Período: Junho a Setembro de 1974
‎Local aproximado: nas matas entre Lumbala Nguimbo, Luso (actual Luena) e Cazombo
‎Protagonistas:
‎Pelo lado português: oficiais da PIDE/DGS e do Comando Militar do Leste, entre eles o coronel Costa Campos
‎Objectivo: negociar um cessar-fogo local e garantir livre circulação das forças da UNITA no Leste após o 25 de Abril.
‎Importância:
‎Estes encontros serviram para a UNITA preservar a sua estrutura militar e consolidar o controlo do planalto central, preparando-se para o pós-colonial.
‎Savimbi sabia que Portugal se retiraria e usou essas conversas para obter armamento e legitimidade junto das autoridades coloniais locais.
‎Resultado:
‎Um acordo tácito de não agressão foi alcançado com os portugueses, o que permitiu à UNITA movimentar-se livremente no Moxico e no Bié até finais de 1974.
2. As matas do Uíge e do ZaireFNLA e comandos portugueses
‎Período: Maio a Agosto de 1974
‎Local: zonas de Maquela do Zombo, Sanza Pombo e Damba
‎Protagonistas:
‎Pela FNLA: comandantes como Pedro Hendrick, Kinkela e Bula Matadi
‎Pelo lado português: oficiais da 1ª Região Militar (Carmona)
‎Objectivo: definir linhas de desmobilização e troca de informações sobre a posição do MPLA e de tropas portuguesas.
‎Importância:
‎A FNLA, com forte apoio do regime de Mobutu e dos EUA, não confiava no MPLA e preferia negociar separadamente com Lisboa.
‎Nesses encontros, ficou acordado que as forças da FNLA poderiam deslocar-se para o interior, o que explica a rápida presença do movimento em Luanda nos primeiros meses de 1975.
‎Resultado:
‎A FNLA conseguiu acesso logístico a várias cidades do Norte e iniciou o transporte de armas vindas do Zaire, com anuência tácita de oficiais portugueses locais.
3. As matas do Kwanza Norte e Malanje – contactos entre o MPLA e tropas coloniais
‎Período: Julho a Setembro de 1974
‎Local: zona de Cacuso, Golungo Alto e Dondo
‎Protagonistas:
‎Pelo lado português: oficiais do Exército destacados de Luanda e de Malanje
‎Objectivo: discutir o cessar-fogo regional e preparar o retorno seguro dos quadros do MPLA a Luanda.
‎Importância:
‎O MPLA aproveitou esses encontros para negociar posições militares estratégicas e garantir o controlo da capital no momento da retirada portuguesa.
Rosa Coutinho, que chegou a Angola em Julho de 1974 como Alto-Comissário, incentivou esses contactos com a esperança de estabilizar o território antes da descolonização.
‎Resultado:
‎A presença do MPLA em Luanda e no eixo Cuanza Norte–Malanje consolidou-se logo no início de 1975, resultado directo dessas negociações discretas.

‎4. Encontros secretos entre guerrilheiros nas tentativas falhadas de aproximação entre movimentos
‎Período: Outubro – Dezembro de 1974
‎Locais: matas do Bié (entre Camacupa e Andulo) e do Moxico
‎Protagonistas:
‎Pequenos destacamentos de guerrilheiros da UNITA e do MPLA, com alguns observadores civis da FNLA, enviados sob mediação da Igreja Católica e de representantes locais da Cruz Vermelha.
‎Objectivo: testar a possibilidade de cessar-fogo entre movimentos angolanos, antes da conferência de Alvor.
‎Resultado: fracasso total.
‎A desconfiança era profunda, as diferenças ideológicas intransponíveis. Em vários casos, as patrulhas enviadas para o diálogo foram emboscadas.
‎Esses episódios confirmam que as “matas” eram já o verdadeiro cenário diplomático de Angola, antes mesmo da conferência de Alvor.

 A Glória dos vencidos e a derrota dos Generais

Por: Artur Cussendala SÁBADO, 18OUT2025

Quando a história é escrita pelos sobreviventes, até a rendição pode parecer um triunfo.

Os generais de carreira travaram combates contra capitães, majores e tenente-coronéis e, paradoxalmente, não venceram. Foram derrotados, desarmados e transformados à força em civis. Ainda assim, há quem veja nessa derrota um “ganho histórico”, como se a rendição pudesse ser reescrita em linguagem de glória. Tal inversão de valores revela a fragilidade da actual intelectualidade angolana, cada vez mais refém de narrativas convenientes e de uma leitura superficial do passado recente.

Um Marechal (Savimbi), rodeado pelos únicos generais de carreira que o país conhecia e com domínio de cerca de 75% do território nacional, não resistiu. Perdeu batalhas, perdeu a guerra e, por fim, capitulou. Para suavizar a vergonha e travestir o fracasso, deu-se à rendição o nome de “Acordo de Paz do Luena”, um título diplomático para encobrir a realidade militar e política do desfecho. Ironicamente, os falsos generais que mataram o Marechal triunfaram também sobre os verdadeiros generais de carreira, e hoje essa inversão é contada como epopeia por alguns dos amnistiados da UNITA.
A responsabilidade maior recai sobre José Eduardo dos Santos, que optou por amnistiar sem julgar, diluindo a fronteira entre justiça e perdão. E, mais recentemente, sobre João Lourenço, que decidiu reabilitar simbolicamente Jonas Savimbi, que outorgará a mesma medalha concedida às vítimas e aos combatentes pela paz. Esse gesto, ainda que revestido de retórica de reconciliação, acabou por nivelar moralmente agressores e ofendidos, algo que a história dificilmente absolverá.
Hoje, muitos acreditam que a violência, o saque e a destruição cometidos em tempos de guerra foram contribuições para a independência e unidade nacional. Mas há equívocos que o tempo não corrige: o humanismo é virtude dos humanos, não dos desumanos.
Tenho dito.

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